pesquisa

Pesquisa personalizada
Seja educado, cinema é lugar sagrado

quarta-feira, 3 de março de 2010

Onde vivem os monstros (Spike Jonze, 2009)


Onde vivem os monstros (Spike Jonze, 2009)
 

por Marcus Vinícius Freitas

À noite, Max usou sua roupa de lobo e fez travessuras de um tipo e de outro
sua mãe o chamou de “MONSTRO” e Max disse “EU VOU DEVORAR VOCÊ!”
então ele foi mandado para a cama sem comer nada.

(Tradução livre da introdução de “Onde Vivem Os Monstros”, de Maurice Sendak)


Eu ainda lembro algumas passagens da minha infância, a aurora da vida. Tinha brinquedos até (Comandos em Ação e Forte Apache serão eternamente queridos), mas usar a imaginação era muito mais divertido. Em poucos segundos lá estava eu, no meio do espaço sideral tentando chegar a um planeta desconhecido. Também me via no meio de uma floresta cheia de animais e plantas perigosas, ou então a bordo de um navio cruzando os sete mares pelo mundo. Resumindo, era possível visitar os lugares mais legais do universo pelo simples fato de ser uma criança, voando pelas asas da fantasia. Bons tempos que não voltam mais.

Max é assim também, passa o dia inteiro brincando. É um garoto arteiro, imperativo, que não para um minuto. Quando não corre para cima e para baixo atrás do cachorro, está montando iglus e um arsenal de bolinhas na neve. Mimado, bagunçou e sujou todo o quarto da irmã, simplesmente por ela não ter brincado com ele. Bastou ver a mãe dividir a atenção com um namorado para armar um escândalo antes da janta, trajando sua inseparável fantasia de lobo. Depois de tomar um baita sermão da sua progenitora, Max sai correndo de casa e acaba embarcando para outro mundo…

O mais incrível de Onde Vivem os Monstros é saber que a obra original é praticamente ilustrativa e contém apenas dez sentenças. Isso mesmo, o livro de Maurice Sendak possui dez frases, exatas 338 palavras distribuídas em 40 páginas. O talentoso Spike Jonze (Adaptação, Quero Ser John Malkovic) contou com a ajuda de Dave Eggers e do próprio Sendak para criar um roteiro a partir dela. O resultado foi melhor que a encomenda, Spike aperfeiçoou a história e criou uma fábula sensível e cativante sobre amizade, companheirismo e, principalmente sobre a inerente imaginação de uma criança.

Antes de tudo, é importante saber a importância do original, um clássico da literatura infantil norte-americana. Foi vencedor da Caldecott Medal em 1964 (o maior prêmio para livros ilustrados), um ano após seu lançamento. No Brasil, chegou oficialmente apenas em outubro de 2009, com mais de quatro décadas de atraso (um abraço para as editoras), impulsionado pela adaptação cinematográfica e o jogo para PC e consoles.

De fato, a obra é muito famosa nos Estados Unidos. Uma rápida procurada no YouTube e milhares de trabalhos escolares e acadêmicos irão aparecer. É possível encontrar até um vídeo com Barack Obama, o atual todo-poderoso presidente americano, lendo-o para crianças e declarando ser um de seus preferidos (veja clicando aqui). Vai ver ele esqueceu que os pequeninos ainda não votam, mas valeu a intenção.

Outra oportuna curiosidade: Onde Vivem os Monstros foi o tema do primeiro teste misturando a animação tradicional com computação gráfica, dirigido por John Lasseter. Legal, mas e quem foi esse cara? Somente um dos fundadores da mais bem sucedida fábrica de sonhos de Hollywood e atual sinônimo de animação, a Pixar Animation Studios.





Esclarecida a magnitude do livro, voltemos ao filme. Depois de navegar por agitados mares, Max chega numa ilha habitada por monstros. Apesar da envergadura e dos dentes afiados, os anfitriãs aparentam um semblante simpático. Após tentarem devorar Max, eles se impressionam com o poder de lábia do baixinho e o declaram como novo rei do lugar.

Mesmo sendo “apenas” vozes, Jonze contou com um elenco de peso para dublar os monstros: James Gandolfini (Família Soprano), Forest Whitaker (O Último Rei da Escócia), Paul Dano (Sangue Negro) e Chris Cooper (que trabalhou com o diretor em Adaptação). A mãe de Max é interpretada por Catherine Keener (O Virgem de 40 Anos).

A parte musical ficou a cargo de Karen O., vocalista do Yeah Yeah Yeahs. Ela juntou várias crianças nos backing vocals e formou a Karen O. and the Kids, banda encarregada da excelente trilha sonora. Mesclando diálogos com melodias divertidas e entusiasmantes (pelo menos na maioria) as faixas dão um toque especial nas sequências. Logo dará uma vontade de ouvi-la excessivamente, principalmente Rumpus, All Is Love, Heads Up e Food Is Still Hot, as melhores músicas do álbum. A faixa do trailer, Wake Up do Arcade Fire, infelizmente ficou de fora da trilha. Uma pena, pois sua letra combinava perfeitamente com a idéia do filme.

Apesar das turbulências e dúvidas que estariam à vista, o foco é na bela amizade entre Max e Carol (voz de Gandolfini), um dos bichos. É bonito ver a relação entre os dois. É tudo simples, verdadeiro e ao mesmo tempo ingênuo, tão cheio de amor. Sim, amor, pois antes de significar romance, paixão ou sexo, essa palavra é a expressão do sentimento que induz a conservar a pessoa ou a coisa (ou monstro) pela qual se sente afeição. Até no dicionário vem antes. O exemplo de companheirismo é deveras emocionante e irá fazer muito marmanjo sair chorando do cinema.

Quem merece uma menção especial é Max Records, o ator mirim que interpreta seu xará. Seu personagem é a alma do filme, é o motivo de tudo. Na verdade nem parece uma atuação, de tão natural que é. Para o garoto, ou melhor, para qualquer um preservar as amizades é tão instintivo quanto à curiosidade, o desejo de desbravar o desconhecido. Se não fosse por isso, ainda estaríamos impressionados com o descobrimento da roda e do fogo. Não adianta, guri tem de ser arteiro mesmo, ele quer mais é sair descobrindo o mundo por si próprio. É da nossa natureza, no fundo todos somos monstros selvagens. Talvez seja essa a lição mais contundente da história.

Convenhamos, não seria bom ficar eternamente uma criança? Tenho certeza que Jonze concordaria comigo. Mas o relógio biológico não tarda e entramos na adolescência, depois ingressamos na idade adulta e assim por diante. É a lei que rege os humanos. Uma pena não poder ficar com nove anos para sempre. Aliás, esse é o segredo para ver Onde Vivem Os Monstros: tire todo o gelo e a amargura que os anos de vivência incutiram no seu coração e veja o filme com os olhos de uma criança. Não é difícil, basta usar sua imaginação.